No próximo dia 19 estreia o tão esperado novo filme de Martin Scorsese. Já ouviste falar? O filme, baseado no livro Silêncio de Shusaku Endo, retrata a vida de um padre jesuíta português que parte para o Japão a fim de aí ajudar os cristãos japoneses.
No processo de passar do papel para o grande ecrã atores e realizador passaram por momentos de encontro e de discernimento que os fez repensar qual o papel que Deus representa nas suas vidas. Ao longo dos próximos dias iremos disponibilizar-te algumas entrevistas, vídeos e textos que a equipa do Post-it tem vindo a reunir e a ler para preparar a grande estreia.
Além do que te propomos aqui, poderás também encontrar propostas de reflexão sobre o filme nas redes sociais dos jesuítas, entre outras.
Em baixo, poderás ler a entrevista a Andrew Garfield, protagonista do filme.
“Graça bastante…: Entrevista a Andrew Garfield, protagonista de “Silêncio”, de Martin Scorsese
Martin Scorsese e Andrew Garfield | D.R.
Há quem faça os Exercícios Espirituais de Santo Inácio pelas mais variadas razões. Como preparação para interpretar um papel num filme de Martin Scorsese não é das mais frequentes, mas não deve ser a pior razão. Muitos homens e mulheres procuram nos retiros alguma luz sobre quem são, ou quem são chamados a ser. Suponho que terá sido assim para Andrew Garfield, quando pediu ao padre. James Martin, S.J., da “America Magazine”, para o guiar através dos Exercícios, enquanto se preparava para ser protagonista de Silêncio, o novo filme de Scorsese.
Primeiro, o padre Martin estava hesitante. Mas Garfield andava à procura de alguma coisa. Ou de alguém. E isso não é, de todo, uma má razão. No final de contas, foi o suficiente para James Martin. E mais do que suficiente para Deus.
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Estava um dia chuvoso em Los Angeles (L.A.) quando almocei com Garfield para falarmos da sua experiência dos Exercícios. Encontrámo-nos num restaurante pequeno e movimentado em Los Feliz, um antigo bairro de L.A, mesmo junto ao icónico Observatório Griffith, na zona este de Hollywood. Era cedo. Ele foi pontual. Estávamos os dois com bastante fome.
Garfield parecia desgastado. Quando nos encontrámos, passava pouco do meio-dia e ele estava cansado.
«Os filmes eram a minha igreja», disse ele. «Quando era miúdo, via filmes e lia livros; nada de verdadeiramente extraordinário, mas era onde me sentia tranquilo, onde me sentia mais eu… mais seguro»
Nas últimas semanas tinha estado a trabalhar na promoção de dois filmes, a filmar um terceiro e a preparar-se para regressar a Londres para estrear uma peça. Trazia consigo uma pequena coleção de cadernos e o telefone. Se juntássemos um portátil e uma chávena de café, podíamos confundi-lo com um estudante universitário. Era véspera de ano novo e ali estava ele, a almoçar com um jesuíta espiritualmente curioso e completamente desconhecido. Não é exatamente a vida glamorosa de Hollywood de que estaríamos à espera. Era mais como um encontro às cegas, estranho e religioso. Dava para perceber que ele estava cansado.
Ainda assim, mesmo na sua fadiga, foi extremamente simpático, generoso com o seu tempo e atencioso no modo de falar. Quis garantir que íamos comer. Ele mandou vir polenta e eu pedi panquecas de mirtilo. Estava cansado, mas agradecido – agradecido pela oportunidade de recordar a sua experiência de fazer os Exercícios com o padre. Martin, ao longo de um ano; agradecido por regressar a um lugar de maior profundidade e consolação do que aquele em que agora se encontra – um lugar de autopromoção em Hollywood. «Isto é como ir ao mercado da “riqueza, honra e soberba”», disse ele, referindo espontaneamente uma meditação chave dos Exercícios Espirituais. Foi perspicaz e bem metido. Estava a falar a minha língua. Fez-me sentir em casa.
Tomou consciência de que não eram só os exemplos de santidade que lhe revelavam uma vida mais profunda e satisfatória, mas também o emaranhado das suas próprias paixões. A conversão de Inácio começou quando ele se tornou sensível à complexidade da sua própria interioridade
Depois de nos apresentarmos rapidamente, começámos a falar sobre a descoberta da sua vocação como ator e que tipo de experiência espiritual ele tinha levado para os Exercícios. «Os filmes eram a minha igreja», disse ele. «Quando era miúdo, via filmes e lia livros; nada de verdadeiramente extraordinário, mas era onde me sentia tranquilo, onde me sentia mais eu… mais seguro.»
Como ele próprio disse, talvez um amor de infância pelas histórias não seja assim tão extraordinário. Foi então que acrescentou algo que me pareceu verdadeiramente inaciano: «Nos livros e nos filmes, eu era transportado para mim mesmo; para a vasta paisagem interior de mim mesmo».
Santo Inácio de Loiola foi transportado de forma semelhante quando começou a escrever os Exercícios Espirituais. Depois de uma grande derrota, ferido enquanto estupidamente tentava ser o herói de uma batalha já perdida, sem nada parecido com um infinito mural de notícias para se ocupar durante o longo e doloroso período de recobro, Inácio começou a ler. Depressa percebeu que a consolação que procurava, a cura de que precisava, não se encontrava na fantasia dos romances de cavalaria, mas nas vidas dos santos. Além disso, tomou consciência de que não eram só os exemplos de santidade que lhe revelavam uma vida mais profunda e satisfatória, mas também o emaranhado das suas próprias paixões. A realidade ferida da sua vida interior tornou-se um lugar de imaginação e graça. A conversão de Inácio começou quando ele se tornou sensível à complexidade da sua própria interioridade.
«Onde sou constantemente tentado a produzir, a ser visto, reconhecido, etc., foi-me mostrada a beleza de viver uma vida escondida, de me retirar para me poder oferecer de modo mais profundo à minha arte, à minha vida, ao mundo.»
Na minha conversa com Garfield, tornou-se muito claro que ele partilha esta sensibilidade inaciana. Também ficou claro que a sua “vasta paisagem interior” é, como muitas das nossas, cheia de feridas e vulnerabilidade. Ele conhece bem o desejo de ser amado que, às vezes, é um tortuoso desejo.
«Atraíam-me histórias que tentavam transformar o sofrimento em beleza», disse. «Sinto que fui agraciado e amaldiçoado com a proximidade a uma espécie de mágoa… a mágoa de viver…» Fez uma pausa, como se juntasse forças para dizer o que realmente queria e, então, revelou-se a fonte do tal cansaço que lhe havia notado: «…a mágoa de viver num tempo e num espaço onde uma vida de alegria e amor é completamente impossível».
Este pensamento, repetiu-o várias vezes no par de horas em que estivemos juntos. A sua vida tem sido ocupada por fardos de amor; pela possibilidade, ou impossibilidade, de um amor real.
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Andrew Garfield foi, na ausência de expressão melhor, bem-sucedido nos Exercícios. «Houve tantas coisas nos Exercícios que me mudaram e me transformaram, que me mostrarem quem eu era… e onde acredito que Deus quer que eu esteja», disse-me. Isto é o melhor resultado que alguém poderia esperar de um retiro. E o seu sucesso não nos deve surpreender.
«O que foi verdadeiramente fácil foi apaixonar-me por esta pessoa; foi apaixonar-me por Jesus Cristo. Isso foi o mais surpreendente»
A sua formação como ator preparou-o bem para as dinâmicas da oração inaciana, onde cada um se imagina a si próprio numa série de cenas bíblicas, de modo a atingir “conhecimento interno” de Deus e a articular esse conhecimento numa vida de ação compassiva e serviço generoso. O que foi mais surpreendente, e que ainda o surpreende, foi o ter-se apaixonado.
Quando lhe perguntei o que se destacava nos Exercícios, fixou vagamente o olhar num ponto fixo, deambulando para algum lugar da memória. Então, como se a pergunta o tivesse levado de novo para a própria experiência, sorriu largamente e disse: «O que foi verdadeiramente fácil foi apaixonar-me por esta pessoa; foi apaixonar-me por Jesus Cristo. Isso foi o mais surpreendente».
Com isto em mente, ficou em silêncio, claramente levado pela emoção. Apertou o peito, mesmo abaixo do esterno, algures entre as entranhas e o coração. O que disse em seguida, saiu-lhe entre gargalhadas: «Meu Deus! Isto foi o mais impressionante – apaixonar-me, e como foi fácil apaixonar-me por Jesus».
De repente, apercebi-me da autenticidade com que ele experimenta a alegria do amor e o pesar das suas frustrações, a dor da sua ausência. «Senti-me tão mal [por Jesus] e tão furioso por Ele, quando finalmente o conheci. Porque todos lhe têm dado uma má reputação. Tanta gente lhe tem dado um nome de porcaria. E têm-no usado para tantas coisas obscuras».
Falhar não é difícil; falhamos constantemente. Difícil é que nos vejam falhar. O que realmente nos dói é sermos reconhecidos como um falhanço. Quando tudo o que queremos é reconhecimento, desejamos ser vistos; se receamos não ser dignos dessa atenção, o que mais nos aterroriza é sermos vistos
Quando digo que Garfield foi bem-sucedido nos Exercícios, é exatamente com esta profissão de amor que provo o meu ponto: Ele apaixonou-se por Jesus. Ele sofre com e pelo amado. E o seu sofrimento compassivo é oferecido mediante uma vocação que pretende ajudar outros a conhecer o amor e sair da sua ausência. «Para mim, essa é a bonita agonia de criar», continuou, «a agonia de nunca ser capaz de expressar completamente a possibilidade do amor e a possibilidade de amar como Ele ensina, e de viver como Ele quer que nós vivamos. A minha compulsão para o trabalho é o desejo de expressar isto mesmo».
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A experiência de se apaixonar por Jesus foi surpreendente, talvez porque Garfield, como muitos outros, chegou aos Exercícios a pedir algo diferente. O que ele trouxe para os Exercícios não foi o desejo explícito de conhecer Cristo, mas uma dolorosa e persistente sensação do seu próprio «não ser suficiente».
Como Inácio antes dele, Garfield era um jovem à procura do seu lugar no mundo. E, como muitos de nós, sob este desejo levava um medo profundo; um medo de não ser suficientemente bom. «A coisa que eu mais queria curar, que levei a Jesus, que levei para os Exercícios, foi este sentimento de não ser suficiente», disse. «Este sentimento do tal desejo eterno pela expressão perfeita disto que existe dentro de cada um de nós. Essa ferida de não se ser suficiente. Essa ferida de sentir como se o que tenho para oferecer nunca fosse o suficiente.»
«Comecei a pensar em atirar-me ao rio. Não tenho nada para dar, não tenho nada para oferecer, sou uma fraude». Hoje, vê neste momento uma oração: «Estava a pedir alguma coisa. Estava a pedir ajuda.»
Muitos de nós vivemos com medo de falhar, mas o que frequentemente não damos conta é de que não é falhar que nos incomoda; é a exposição. Falhar não é difícil; falhamos constantemente. Difícil é que nos vejam falhar. O que realmente nos dói é sermos reconhecidos como um falhanço. Quando tudo o que queremos é reconhecimento, desejamos ser vistos; se receamos não ser dignos dessa atenção, o que mais nos aterroriza é sermos vistos. Esta tensão é algo que Andrew Garfield compreende muito bem.
O momento que recorda como a mais profunda experiência da presença de Deus na sua vida aconteceu mesmo antes da sua primeira atuação pública, depois de terminar o curso de teatro. Ia representar o papel de Ofélia numa encenação de Hamlet, de Shakespear, no Globe Theater em Londres. «Faltam cerca de duas horas para o espetáculo e, de repente, sinto-me como se fosse morrer», recorda. «Genuinamente, sinto que se pisar o palco me destruo completamente. Nunca senti um terror tão grande, um pavor mortal, um não ser suficiente, insegurança. Terror de ser visto. Terror de me revelar e de oferecer o meu coração. De me expor e dizer “olhem para mim”.»
Para se acalmar, foi dar um passeio na margem Sul do Tamisa. Estava um dia nublado e os seus pensamentos procuravam uma fuga: «Comecei a pensar em atirar-me ao rio. Não tenho nada para dar, não tenho nada para oferecer, sou uma fraude». Hoje, vê neste momento uma oração: «Estava a pedir alguma coisa. Estava a pedir ajuda.»
«A sua disponibilidade para ser vulnerável mudou verdadeiramente a minha vida. Acho que percebi, pela primeira vez, o modo como a arte cria sentido, como muda a vida das pessoas. Mudou a minha vida.»
Foi então que ouviu um artista de rua a cantar, de modo bastante imperfeito, uma canção familiar: Vincent, de Don MacLean. Do que melhor se recorda é da imperfeição daquele cantor. «Se aquele tipo tivesse ficado na cama a dizer “não tenho nada para dar, a minha voz não é assim tão boa, não estou pronto para atuar em público, eu não sou suficientemente bom”. Se ele tivesse ouvido essas vozes, eu não teria recebido o que precisava», disse. «A sua disponibilidade para ser vulnerável mudou verdadeiramente a minha vida. Acho que percebi, pela primeira vez, o modo como a arte cria sentido, como muda a vida das pessoas. Mudou a minha vida.»
Este momento partilhado de imperfeição artística salvou-o: «Literalmente, as nuvens partiram e o sol saiu e brilhou sobre mim e sobre este tipo; e eu estava ali a chorar incontrolavelmente. E foi como se Deus me estivesse a agarrar pelo pescoço e a dizer: “Tens estado a pensar que se subires a palco, vais morrer. Na verdade, se não subires, vais morrer”.»
Desde então vive com esta tensão criativa – um medo profundo de ser visto e uma necessidade disso mesmo ainda maior. Se o que nos aterroriza é sermos vistos na nossa imperfeição, a redenção está em sermos suportados na nossa vulnerabilidade.
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Entre as etapas mais comoventes dos Exercícios, para Garfield, contam-se as contemplações da assim chamada “vida oculta” de Jesus. «Pareceu-me muito importante», recorda. «Onde sou constantemente tentado a produzir, a ser visto, reconhecido, etc., foi-me mostrada a beleza de viver uma vida escondida, de me retirar para me poder oferecer de modo mais profundo à minha arte, à minha vida, ao mundo.» Considerando o seu desconforto evidente com as armadilhas da fama, a atração por uma vida oculta não é surpreendente. Ainda assim, estas meditações da infância de Cristo também revelaram um desejo de entrar nas partes escondidas da sua própria vida – nas suas feridas de não ser suficiente, nos lugares de desolação que todos carregamos, mas que tantas vezes não encontramos o caminho para dentro ou fora deles.
«A profundidade da experiência dos Exercícios foi suficiente. Depois, fazer o filme foi muito, muito profundo. Mais profundo do que qualquer outra experiência artística que já tive, mas não tão profundo como fazer os Exercícios»
Apesar de tudo, o exercício mais crítico para Garfield não foi sobre a vida oculta, nem sobre a sua existência ferida. Foi sobre a revelação de algo sagrado, sobre a vulnerabilidade de Deus. Durante a meditação da Natividade imaginou-se, como Inácio recomenda, a fazer de criado na cena do nascimento de Cristo: «Ali, senti-me em casa. Senti que era ali que eu tinha de estar. Ao serviço desta mulher num ato tão profundo.» Começou a dar-se conta de como o antídoto para a humilhação pode passar pela humildade. «Gostava mesmo de me poder sentir sempre assim, em serviço humilde», disse. «Se puder transformar este meu contar de histórias em serviço, se puder estar ao serviço e ser tão humilde quanto possível enquanto o faço…» Volta a perder-se na memória daquele momento. E não o posso culpar. Não é coisa pequena.
Os atores são vistos, desde o início dos tempos, como parteiras. O ator, como todos os sacerdotes, coloca-se perante a verdade e participa na sua afirmação, através das suas palavras e gestos, pela proclamação das nossas histórias sagradas de redenção e amor. Ao contemplar o nascimento de Cristo, Garfield descobriu algo que outros atores-parteiras e místicos já sabem há muito tempo – que é a pela nossa personificação do amor, pelo nosso serviço humilde, que nos tornamos no amor que desejamos encontrar.
A experiência dos Exercícios é sagrada porque é um lugar onde podemos conhecer a verdade do amor; onde a personificação do amor é revelada em Cristo. Sentirmo-nos participantes no trabalho de parto para o mundo do amor que ansiamos é um momento místico para qualquer um de nós. Não é fácil. É, em todos os sentidos, um exercício e até mais. Mas é, sem dúvida, o maior dos dons.
Contudo, ser parteiro deste amor para o mundo não nos liberta das dores de parto. Não é a possibilidade de amar que remedeia a impossibilidade. Em vez disso, é a personificação do amor que, por fim, nos redime. É este parto que nos salva. É, em todos os sentidos, um parto ainda a acontecer.
«Se não tivesse feito o filme, estava tudo bem. Mas a única experiência que não quereria sacrificar, se tivesse de escolher… seria a de fazer os Exercícios. Traz-me tanta consolação. Faz mesmo crescer em humildade, porque mostra que podemos dedicar um ano das nossas vidas à transformação espiritual, desejando sinceramente entrar em relação com Cristo e com Deus, e pondo em prática esse desejo»
«Fiquei de rastos nestes Exercícios», disse Garfield, «e, ainda assim, aqui estou eu, a lidar com as mesmas porcarias. Fazer um filme foi secundário relativamente à experiência de fazer os Exercícios, e a estreia do filme é terciária a todas estas coisas… e a profundidade da experiência está nisso mesmo. A profundidade da experiência dos Exercícios foi suficiente. Depois, fazer o filme foi muito, muito profundo. Mais profundo do que qualquer outra experiência artística que já tive, mas não tão profundo como fazer os Exercícios. Ainda que tenha sido, dada a intenção e os objectivos, demasiado profundo na mesma. E agora o filme está a estrear e eu regressei à minha vida superficial. Estou a tentar reconciliar tudo isto».
Continuar apaixonado não é fácil, tal como não é fácil permanecer num lugar de graça depois um retiro ou de um intenso momento de oração. O mundo regressa até nós e nós até ele. Mas quando perguntei se continuava a confiar na autenticidade do seu enamoramento, ele voltou a sorrir, olhou-me nos olhos e assegurou-me: «Meu Deus… Isto, isto foi suficiente. Se não tivesse feito o filme, estava tudo bem. Mas a única experiência que não quereria sacrificar, se tivesse de escolher… seria a de fazer os Exercícios. Traz-me tanta consolação. Faz mesmo crescer em humildade, porque mostra que podemos dedicar um ano das nossas vidas à transformação espiritual, desejando sinceramente entrar em relação com Cristo e com Deus, e pondo em prática esse desejo; podemos perder 20 kg, sacrificarmo-nos pela nossa arte, rezar todos os dias, viver em celibato por seis meses; fazer estes sacrifícios todos ao serviço de Deus, ao serviço do que acreditamos que Deus nos está a pedir e, mesmo depois de tanta alma e coração, essa oferta humilde… essa humildade… mesmo depois de tudo isto, pode vir alguém e atirar uma pedra que desfaz tudo. É uma graça maravilhosa receber isto; compreender. E é uma consolação enorme saber que, não importa o quanto eu me esforce, vai haver sempre alguém a não gostar de mim. Vai haver sempre pelo menos uma pessoa a dizer que não valho nada. É maravilhoso!».
«Rezo para ser mais livre de me oferecer vulneravelmente… e que essas outras vozes, quer sejam interiores ou exteriores, não tenham o mesmo poder sobre a chama, sobre a capacidade de oferecer esse puro e vulnerável coração partido e aberto… ao serviço de Deus, ao serviço do bem maior, ao serviço do amor, ao serviço do divino. Sinto que é isto que Deus me está a mostrar»
Se Garfield parecia cansado quando nos encontrámos, está longe de o parecer agora. Enquanto enumera tanto bem recebido, está visivelmente alegre e ri-se às gargalhadas. Mesmo quando reconhece que alguns vão achar que ele «não vale nada», parece radiante e livre.
«Esta é a minha oração sincera», disse. «Rezo para ser mais livre de me oferecer vulneravelmente… e que essas outras vozes, quer sejam interiores ou exteriores, não tenham o mesmo poder sobre a chama, sobre a capacidade de oferecer esse puro e vulnerável coração partido e aberto… ao serviço de Deus, ao serviço do bem maior, ao serviço do amor, ao serviço do divino. Sinto que é isto que Deus me está a mostrar. E dói quando me sinto incompreendido, ou negligenciado… mas desejo que doa menos, para que possa continuar a oferecer-me vulneravelmente.»
No núcleo dos Exercícios Espirituais está a personificação do amor, e não a sua mera possibilidade. A possibilidade de amar, ou a sua impossibilidade, paralisa-nos. Mas a personificação do amor, o amor vulnerável, ferido e vencido que vi no coração de Andrew Garfield, a personificação do amor que experienciou como parteira de Maria, o amor que guarda na sua “vida oculta”, o amor que vive no seu desejo de ser visto em profundidade e reconhecido completamente, este enamoramento com que continua a debater-se nas suas relações com Deus e com os outros – a personificação do amor é o que, no fim, nos redime a todos. Se a impossibilidade de amar nos deixa no desejo, é na personificação do amor que vamos encontrar a nossa satisfação. É na personificação do amor que vamos descobrir o nosso “ser suficiente”.
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Quando cheguei a Madrid voltei a reparar, como se o visse pela primeira vez, num pisa-papel que o meu pai me ofereceu há um ano, no meu aniversário. É um bloco de alumínio simples, que tem gravado em letras fortes: «Eu sou suficiente». Esta parece ser a graça que Deus tinha em mente para Andrew Garfield, a graça que todos os pais querem para os seus filhos: que possamos conhecer-nos como, nada mais, nada menos, qua a personificação do seu amor. E que saber isso seja suficiente. É a oração final que Inácio recomenda que façamos nos Exercícios: «Disponde de tudo (…). Dai-me o vosso amor e graça, que esta me basta».
Brendan Busse
In “America”
Trad.: Débora Duarte
Publicado em 12.01.2017 in Secretário Nacional da Pastoral da Cultura