No dia seguinte a Cristo ter subido ao céu estavam alguns reunidos numa casa. Tomé, rindo baixinho, afirmou: “Isto da Igreja que o Senhor disse para construirmos, não pode funcionar!”
Madalena, que estava perto, perguntou-lhe surpreendida “Porque dizes isso?” Ele respondeu “Então não vês? Ele foi-se e nós ficámos. As pessoas vêm ter connosco à procura de Deus, mas só nos vêem a nós. Ele podia ter ficado cá ou ter deixado, ao menos, alguns anjos. Em vez disso, deixou-nos só a nós. Isto não pode mesmo funcionar.” E Tomé deu outra gargalhada.
Madalena perguntou-lhe “Se achas mesmo que não vai funcionar, porque estás tão satisfeito?”. Tomé riu de novo e respondeu: “Eu não disse que não vai funcionar. Disse que não pode funcionar. Não vês que esta ideia de nos deixar sozinhos é mesmo a prova de que a Igreja só pode ser uma ideia d’Ele?! É tão típico do Senhor querer mostrar-se através de nós, e não directamente. A Igreja não pode funcionar. Vai funcionar porque não estamos cá só nós. Ele também cá está, como disse. Mas a Ele ninguém o vê. A não ser através de nós.”
“Tens razão!” disse Madalena “Só o Senhor se lembraria de fazer o seu reino através de nós. Quantas pessoas andarão à procura de Deus e desejarão vir até Ele, mas recusarão a Igreja porque só nos vêem a nós. Nós não somos Deus. Haverá muitos que acreditarão em Cristo mas não acreditaram na sua Igreja, por ser feita de homens. E não perceberão que nós nunca quereríamos que as coisas fossem assim. Foi Ele que quis. Tenho tanta pena deles, porque os compreendo bem. Percebo que não gostem de mim ou de ti. Mas eles esquecem que, na Igreja, não sou eu ou tu que contamos, mas o Senhor. Só quem ama muito o Senhor pode compreender a Igreja, porque a Igreja é Ele.”
Tomé continuou “Por isso nos hão-de desprezar e perseguir. Haverá os que nos desprezarão por sermos poéticos e idealistas, como João, e os que nos atacarão por sermos pragmáticos e eficientes, como Mateus. Hão-de criticar-nos por sermos expansivos como Filipe, ou sérios como Bartolomeu, por sermos rígidos como Tiago ou tolerantes como Pedro, envolvidos na política, como Simão, ou desinteressados do mundo, como André. Alguns perseguirão a Igreja por ser pobre e viver com os pobres, outros acusar-nos-ão por alguns de nós serem ricos, como José de Arimateia, ou poderosos como Nicodemos. Hão-de censurar-nos por não sabermos usar bem o dinheiro para ajudar os pobres e, pelo contrário, hão-de censurar-nos por o administrarmos com excessivo cuidado. E em tantas dessas críticas haverá verdade, porque o que se vê da Igreja somos só nós. Alguns até nos perseguirão em nome do Altíssimo. Lembra-te do que o Senhor disse: “virá a hora em que qualquer um que vos tirar a vida julgará estar a prestar um serviço a Deus” (Jo 16, 2).
“E não te esqueças daqueles que, justamente, nos vão condenar pelas lutas e injustiças entre nós”, disse Madalena. “Se tivemos discórdias enquanto o Senhor cá estava, como daquela vez em que queriam saber quem era o maior, haverá certamente muitas discussões e lutas no futuro. Somos humanos, iguais aos outros. A única diferença é que trazemos nas nossas mãos indignas um tesouro inimaginável. Ele deixou-nos o tesouro, mas não nos deixou nem guardas nem o cofre. Além do tesouro, só cá estamos nós.”
João que tinha seguido a conversa calado, interveio para dizer. “Estamos como a mãe do Senhor, Maria, grávida naquela pequena casa perdida da Galileia.”
Fez-se um silêncio. Foi João quem voltou a falar “Os que mais lamento são os muitos que irão pensar que a Igreja é apenas uma atitude e regras de moral, de amor ao próximo e ajuda aos pobres. Muitos dos que se irão juntar a nós, alguns muito bem intencionados, serão desses”.
Bartolomeu deu um salto e perguntou “Achas mesmo possível isso? Mas o Senhor foi tão claro quando disse que teríamos de ”nascer de novo” e ter uma “vida nova”. Achas mesmo possível que alguém pertença à Igreja apenas para viver melhor a vida antiga?! Como poderão eles entender estas palavras do Senhor?”
João sorriu tristemente e respondeu “Muitos dirão que a “vida nova” é uma metáfora do Senhor para significar apenas a bondade, a ajuda aos pobres e a mudança social. Pensarão que viver com Cristo é só para depois de morto e dedicar-se-ão a tratar bem das coisas daqui. Não percebem que isso é, não a vida nova, mas um dos sinais da vida nova que temos no Senhor. É o sinal mais visível e importante, mas que nada significa se não nascermos de novo, todos os dias, em Cristo. Muitas das lutas de que Maria Madalena falou virão disto. Este foi o pecado que O matou.”
“Tens razão”, respondeu Bartolomeu. “Esse foi o pior pecado de Judas Iscariotes, pensar que o Senhor vinha só implantar a justiça no mundo, melhorar a sociedade e ajudar os pobres, e se Judas, que falou tantas vezes com o Senhor e viveu tanto tempo connosco, cometeu esse pecado, muitos outros hão-de fazê-lo também.” Bartolomeu baixou a cabeça e ficou silêncio.
Madalena disse “Haverá os que medirão o sucesso da Igreja em números, porque ela também terá desse sucesso. Mas esse não interessa. Como não se mede a luz pelo número de lâmpadas, porque o que conta é o Sol.”
Nesse momento entrou Pedro. Trazia um saco com algum peixe, pão e vinho para a refeição. Madalena e Tomé levantaram-se para o ajudar e ela explicou-lhe do que falavam.
Pedro rindo, perguntou se isso não era mais uma das subtilezas de Tomé, que ele nunca percebia. Tomé respondeu “Eu tenho uma confiança ilimitada no Senhor. As minhas dúvidas vêm só da minha falta de confiança nas nossas forças e na nossa capacidade de o seguir.”
Madalena perguntou a Pedro “Mas tu tens confiança nas nossas capacidades, não tens Pedro?” Nesse momento ouviu-se um galo.
Pedro sorriu, sentou-se à mesa e disse, calmamente. “Não tenho nem um bocadinho de confiança nas nossas forças. Nisso, tenho ainda mais dúvidas que Tomé. O que eu tenho é tanta confiança no Senhor que acho que ele consegue fazer a sua Igreja mesmo com a nossa total incapacidade de o compreender e de o seguir.”
Crónica original publicada no DN, em 5 de abril de 1999